D'AQUÉM E D'ALÉM MAR
Devido às semelhanças que existem entre este texto publicado em Moçambique e qualquer outro texto que pudesse ser publicado em Portugal, quero deixá-lo aqui registado para esclarecimento dos leitores mais jovens.
"A ciência de Deus
Ao fim destes anos todos, eu já devia estar vacinado contra este tipo de coisas, mas a verdade é que verifico que não estou.
E, de vez em quando, apanho com um murro no estômago.
O último foi quando vi, num dos nossos jornais, a foto do antigo Presidente Joaquim Chissano a receber as insígnias de Doutor, Honoris Causa, em Teologia, pela Universidade Latina de Teologia.
O leitor mais jovem vai ficar admirado com esta minha introdução. Vai perguntar por que razão me incomoda que aquele antigo dirigente tenha sido doutorado em Teologia.
Mas isto é porque os meus leitores mais jovens não viveram o período, logo a seguir à Independência nacional, em que todos os nossos dirigentes se declaravam materialistas, marxistas-leninistas.
E nessa posição ideológica Deus tinha pouco espaço, se é que tinha algum.
Recordo-me de que Samora dizia que, nas nossas forças armadas, só queria oficiais que fossem
comunistas convictos.
E não me recordo de ouvir nenhum dos seus camaradas recusar postos nessas mesmas forças armadas alegando as suas convicções religiosas. Pelo contrário, todos exibiam com garbo as suas fardas de oficiais superiores, e até oficiais generais, nesse tal exército de comunistas.
O Mundo deu as voltas que deu e a grande maioria dos tais comunistas são hoje prósperos empresários capitalistas.
Alguns foram achando que os seus casamentos revolucionários não tinham o mesmo peso que outros mais tradicionais e, discretamente, lá foram até à capela mais próxima para santificar relações já com dezenas de anos, com filhos e netos já nascidos e crescidos.
Agora sabemos que um desses dirigentes, do mais alto nível da hierarquia da época, que nos pregava a via do materialismo dialéctico para a felicidade na terra, dado que depois da morte nada mais existia, aceitou ser doutorado em Teologia, a Ciência de Deus.
E parece-me que isso é levar as coisas longe demais.
Ou Joaquim Chissano nunca foi materialista, nem marxista-leninista nem coisa parecida com isso e andou durante aqueles anos todos a fazer um enorme teatro para nos enganar a todos, a começar pelo seu chefe Samora, ou, passados uns anos, um anjo deve ter descido de uma qualquer nuvem, tocando harpa ou trombeta, para o banhar de uma luz celestial, retirando-o das trevas pecaminosas do materialismo para o fazer encontrar o caminho da verdadeira fé.
Eu, que continuo materialista e ateu, vou mais pela primeira hipótese, a do teatro. Vou mais pela incapacidade de revelar as suas verdadeiras crenças, com medo de perder as benesses do poder revolucionário da época.
E nisso não esteve sozinho, muito longe disso. A dizer a verdade só recordo o exemplo do embaixador Chafurdine Khan que nunca abdicou das suas crenças religiosas e, por isso, não teve a carreira que poderia ter tido.
Temos, portanto, a partir de agora, Joaquim Chissano a juntar-se à lista dos doutores da igreja católica. A juntar-se a S.Tomás de Aquino, ao Papa Leão I, a Santa Anastácia ou a Sto. António de Lisboa e a tantos outros.
E, se não nos pomos a pau, ainda acaba canonizado, para mal dos nossos pecados.
A única vantagem era que, à semelhança das grandes festas a Sto. António, que se fazem no popular bairro de Alfama, em Lisboa, com sardinhas, caldo verde e muito vinho, talvez passássemos a ter também as festas de Sto. Alberto Chissano, ali no Alto Maé, com matapa e sumo de caju.
Mas, falando a sério: Ninguém tem nada a ver com as crenças religiosas de cada um. É assunto pessoal, do seu foro íntimo.
Agora o que foi errado, muitíssimo errado, foi terem andado a fingir que eram coisas que não eram e terem andado a impingir-nos ideias que, lá bem no fundo, muitos nem sequer compartilhavam.
Em resumo, o mal foi terem andado a mentir-nos, da forma como andaram, durante tantos anos.
Machado da Graça
in SAVANA