João Miguel Tavares
A justiça pode ser complexa na sua execução, Mas tem de ser cristalina no momento em que exerce o seu poder, para que o pastor da serra com a quarta classe possa compreender a decisão que condena o senhor banqueiro que meteu milhões ao bolso.
Uma das minhas cunhadas enviou-me um mail no início do mês, após eu ter assinado uma longa sucessão de textos sobre o caso Face Oculta. Basicamente, para me dizer que eu estava a ficar chato. 'Já estou a ficar um pouco entediada', escreveu ela. 'Quando se bate tanto na mesma tecla as pessoas deixam de ouvir. Usa o resto da escala.'
Se tivesse sido a secretária pessoal de José Sócrates a dizer uma coisa destas, eu percebia. Se tivesse sido a minha sogra, ainda podia dar o desconto. Mas a minha cunhada? Conselhos de cunhada exigem introspecção e exame de consciência. Fui deitar as criancinhas, fechei a porta do quarto, e entrei em meditação: 'Espelho meu, espelho meu, haverá alguém mais obcecado pela justiça do que eu?' O espelho respondeu: a Manuela Moura Guedes.
Mas eu expliquei ao espelho que essa já não contava e continuei a meditar.
Pensei: muitas outras coisas se passaram em Portugal em 2009. O psicodrama da avaliação dos professores. O medicodrama da gripe A. O défice dos 5 que afinal são 8. O transe colectivo do PSD. As escutas imaginárias no Palácio de Belém. Eleições para todos os gostos, com o seu colorido tão particular. Tantas coisas giras sobre as quais escrever. Tantas teclas diferentes. Porquê, então, esta pancada pela justiça? A voz da cunhada não será a voz da razão?
Acordei no dia seguinte com olheiras profundas mas muito confiante nesta minha certeza: problemas é matéria-prima que nunca faltou a Portugal, mas nenhum deles é tão estruturalmente grave quanto este. O descrédito da justiça é a primeira peça de uma longa fileira de dominós – um pequeno empurrão e tudo desaba, sem sequer sobrar uma bela figura geométrica para apreciar no final. Apenas um amontoado de peças sem préstimo. Somente um país desconfiado de juízes, polícias, políticos e instituições.
Tenho para mim que tudo começou com o processo Casa Pia. Antes dele nós sabíamos que a justiça era lenta. Que os processos morriam de velhos nas prateleiras dos tribunais. Mas as pessoas não punham em causa a competência das decisões. Demoravam dez anos, mas as sentenças eram atinadas. A justiça tardava, mas não falhava. A partir do processo Casa Pia, a dúvida instalou-se: afinal, a justiça não era só lenta – ela também dava preocupantes mostras de ser incompetente.
Incompetente a investigar. Incompetente na sua relação com a comunicação social. Incompetente a proteger o segredo de justiça. Incompetente a lidar com a separação dos poderes. Incompetente, enfim, na sua relação com a sociedade, que não compreende boa parte das suas decisões, presas em legalismos e formalidades que apenas servem para deixar os não--iniciados à porta.
Ora, a justiça pode ser complexa na sua execução, e é por isso que advogados e juízes queimam as pestanas a estudar tijolos cheios de anotações durante a sua vida académica e profissional. Mas a justiça tem de ser cristalina no momento em que exerce o seu poder, para que o pastor da serra da Estrela com a quarta classe seja capaz de compreender a decisão que condena o senhor banqueiro que meteu milhões ao bolso.
É a isso que temos andado a assistir nos últimos anos? Não, não é. E 2009 foi o cume dessa erosão na crença do poder da justiça. De súbito, olhámos à nossa volta e vimos um enorme barco a ir lentamente ao fundo, com buracos da popa à proa, a deixar entrar água por todos os lados. Pior que tudo: os marinheiros a bordo continuavam a estar mais preocupados em salvar os seus bens pessoais do que em impedir que o barco se afundasse. É o chamado 'peso das corporações', um lastro de egoísmos que apenas acelera o desastre.
Não é difícil perceber como chegámos aqui. Ao contrário do Titanic, a justiça colidiu com um icebergue bastante visível e em plena luz do dia. Chama-se 'poder político'. Do Freeport à Face Oculta, passando pelo BPN, em todos estes casos a justiça ameaçou tocar com a sua mão em lugares demasiado elevados da cadeia alimentar – e levou uma furiosa dentada de volta. Portugal ainda não é manifestamente capaz de lidar com isso. Resultado: investigações atabalhoadas, pressões políticas, decisões incompreensíveis. E o Zé Povinho na desagradável situação de sentir que sem uma licenciatura em Direito nunca conseguirá compreender o país onde vive.
Se pensarmos bem, estamos todos como a minha cunhada. Entediados. Fartos de casos e processos. Cansados de uma justiça que promove fugas de informação para esconder as suas incompetências e de um poder político que utiliza todos os golpes baixos para fugir às suas responsabilidades. Mas 2009 provou à saciedade que a solução não é mudar de tecla. É continuar a tocar. E tocar. E tocar. Até que, finalmente, alguém ouça. E os poderes político e judicial percebam que a água já está pelo pescoço. Talvez em 2010.
In Correio da Manhã
( Texto enviado para publicação por Carlos Jorge Mota )
A justiça pode ser complexa na sua execução, Mas tem de ser cristalina no momento em que exerce o seu poder, para que o pastor da serra com a quarta classe possa compreender a decisão que condena o senhor banqueiro que meteu milhões ao bolso.
Uma das minhas cunhadas enviou-me um mail no início do mês, após eu ter assinado uma longa sucessão de textos sobre o caso Face Oculta. Basicamente, para me dizer que eu estava a ficar chato. 'Já estou a ficar um pouco entediada', escreveu ela. 'Quando se bate tanto na mesma tecla as pessoas deixam de ouvir. Usa o resto da escala.'
Se tivesse sido a secretária pessoal de José Sócrates a dizer uma coisa destas, eu percebia. Se tivesse sido a minha sogra, ainda podia dar o desconto. Mas a minha cunhada? Conselhos de cunhada exigem introspecção e exame de consciência. Fui deitar as criancinhas, fechei a porta do quarto, e entrei em meditação: 'Espelho meu, espelho meu, haverá alguém mais obcecado pela justiça do que eu?' O espelho respondeu: a Manuela Moura Guedes.
Mas eu expliquei ao espelho que essa já não contava e continuei a meditar.
Pensei: muitas outras coisas se passaram em Portugal em 2009. O psicodrama da avaliação dos professores. O medicodrama da gripe A. O défice dos 5 que afinal são 8. O transe colectivo do PSD. As escutas imaginárias no Palácio de Belém. Eleições para todos os gostos, com o seu colorido tão particular. Tantas coisas giras sobre as quais escrever. Tantas teclas diferentes. Porquê, então, esta pancada pela justiça? A voz da cunhada não será a voz da razão?
Acordei no dia seguinte com olheiras profundas mas muito confiante nesta minha certeza: problemas é matéria-prima que nunca faltou a Portugal, mas nenhum deles é tão estruturalmente grave quanto este. O descrédito da justiça é a primeira peça de uma longa fileira de dominós – um pequeno empurrão e tudo desaba, sem sequer sobrar uma bela figura geométrica para apreciar no final. Apenas um amontoado de peças sem préstimo. Somente um país desconfiado de juízes, polícias, políticos e instituições.
Tenho para mim que tudo começou com o processo Casa Pia. Antes dele nós sabíamos que a justiça era lenta. Que os processos morriam de velhos nas prateleiras dos tribunais. Mas as pessoas não punham em causa a competência das decisões. Demoravam dez anos, mas as sentenças eram atinadas. A justiça tardava, mas não falhava. A partir do processo Casa Pia, a dúvida instalou-se: afinal, a justiça não era só lenta – ela também dava preocupantes mostras de ser incompetente.
Incompetente a investigar. Incompetente na sua relação com a comunicação social. Incompetente a proteger o segredo de justiça. Incompetente a lidar com a separação dos poderes. Incompetente, enfim, na sua relação com a sociedade, que não compreende boa parte das suas decisões, presas em legalismos e formalidades que apenas servem para deixar os não--iniciados à porta.
Ora, a justiça pode ser complexa na sua execução, e é por isso que advogados e juízes queimam as pestanas a estudar tijolos cheios de anotações durante a sua vida académica e profissional. Mas a justiça tem de ser cristalina no momento em que exerce o seu poder, para que o pastor da serra da Estrela com a quarta classe seja capaz de compreender a decisão que condena o senhor banqueiro que meteu milhões ao bolso.
É a isso que temos andado a assistir nos últimos anos? Não, não é. E 2009 foi o cume dessa erosão na crença do poder da justiça. De súbito, olhámos à nossa volta e vimos um enorme barco a ir lentamente ao fundo, com buracos da popa à proa, a deixar entrar água por todos os lados. Pior que tudo: os marinheiros a bordo continuavam a estar mais preocupados em salvar os seus bens pessoais do que em impedir que o barco se afundasse. É o chamado 'peso das corporações', um lastro de egoísmos que apenas acelera o desastre.
Não é difícil perceber como chegámos aqui. Ao contrário do Titanic, a justiça colidiu com um icebergue bastante visível e em plena luz do dia. Chama-se 'poder político'. Do Freeport à Face Oculta, passando pelo BPN, em todos estes casos a justiça ameaçou tocar com a sua mão em lugares demasiado elevados da cadeia alimentar – e levou uma furiosa dentada de volta. Portugal ainda não é manifestamente capaz de lidar com isso. Resultado: investigações atabalhoadas, pressões políticas, decisões incompreensíveis. E o Zé Povinho na desagradável situação de sentir que sem uma licenciatura em Direito nunca conseguirá compreender o país onde vive.
Se pensarmos bem, estamos todos como a minha cunhada. Entediados. Fartos de casos e processos. Cansados de uma justiça que promove fugas de informação para esconder as suas incompetências e de um poder político que utiliza todos os golpes baixos para fugir às suas responsabilidades. Mas 2009 provou à saciedade que a solução não é mudar de tecla. É continuar a tocar. E tocar. E tocar. Até que, finalmente, alguém ouça. E os poderes político e judicial percebam que a água já está pelo pescoço. Talvez em 2010.
In Correio da Manhã
( Texto enviado para publicação por Carlos Jorge Mota )
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